jeudi, mars 27, 2008

"A pior vontade de viver"

"Todos são compreensivos, aceitam tão bem suas escolhas, torcem por tudo que você faz, não é mesmo? Desde que você faça o que está no script. Que siga o que foi determinado no roteiro, aquele que foi escrito sabe-se lá por quem e homologado no instante em que você nasceu. Mas e quem não quiser seguir esse script?

(...) andei relendo algumas das obras de Clarice Lispector (que completa 30 anos de falecimento em dezembro), e encontrei no conto "Amor", do livro "Laços de Família", uma de minhas frases prediletas. Assim ela descreve o sentimento da personagem Ana: "Seu coração enchera-se com a pior vontade de viver".

Ela é complexa, angustiante, subjetiva e intensa. Ela, "a pior vontade". A vontade que não está disposta a negociar com a vontade dos outros.

No entanto, esta que foi chamada de "pior" vontade pode ser também uma vontade genuína e inocente. É a vontade da criança que ainda levamos dentro, entranhada. É o desejo de açúcar, de traquinagem, de fazer algo escondido, de quebrar algumas regras, de imitar os adultos. A "pior" vontade é curiosa, quer observar pelo buraco da fechadura e depois, mais ousadamente, abrir a porta e entrar no quarto proibido.

A "pior" vontade é a de não se enraizar, não assinar contrato de exclusividade, não firmar compromisso, não se render às vontades fixas, apenas as vontades momentaneas, porque as fixas correm o risco de deixar de serem vontade para se tornar vaidade - como se sabe, há sempre aqueles que se envaidecem da própria persistencia.

A "pior" vontade não quer ganhar medalha de honra ao mérito, não quer posar para fotografias, nao quer completar bodas de ouro nem ser jubilada. A "pior" vontade não faz a menor questão de ser percebida, ela quer ser realizada. É quando você sabe que não deveria, mas vai. Sabe que não será fácil, mas enfrenta. Sabe que tomarão como agressão, mas arrisca. Aqui, cabe lembrar? apenas se sentem agredidos aqueles que te invejam.

A vontade oficial, a vontade santinha, a que não causa incômodo, é a outra, a aprovada pela sociedade, a que não leva em conta o seu íntimo, e sim a opinião publica. É a vontade que todos nós, de certa forma, temos de mostrar para os outros que somos felizes, sem saber que para conseguir isso é preciso, antes, ter a "pior" vontade, aquela que faz você descobrir que ser feliz é ter consiencia do efêmero, é saber-se capaz de agarrar o instante, é lidar bem com o que não é definitivo - ou seja, TUDO. É com esta "pior" vontade de viver que você atrai os outros, que seu magnetismo cresce, que seu rosto rejuvenesce e que você fica mais interessante.

É uma pena que nem todos tenham a sorte de deixar vir a tona esta que Clarice Lispector chamou de "a pior vontade de viver", e que, secretamente, é a melhor".

(por Martha Medeiros, dia 26/08/07 na Revista O
Globo)

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